Ana Clara, 36 ANOS.
Ela é um enigma.
Dona de uma voz doce e suave, quem a conhece de verdade sabe que ela sabe ser um furacão quando precisa.
Mas poucos a conhecem.
Ela mostra uma parte de si. A parte que a deixa confortável.
Os abusos narcisistas pelos quais passou a tornaram desconfiada e extremamente observadora.
Segundo ela, seu poder se observação faz com que ela seja capaz de detectar o menor sinal de abuso à distância.
A entrevista começa com ela arrumando seus cabelos, preocupada com os detalhes da sua roupa, unhas e postura.
Mesmo sabendo que sua identidade será preservada, ela se mostra impecavelmente alinhada.
A conversa flui e ela conta sobre o que viveu.
Tento manter meu sorriso esboçando naturalidade ao ouvir sua história mas algumas partes me fazem ter que parar para respirar.
Não sei ao certo dizer o que me causa mais espanto, se é o teor daquela narrativa ou a força de quem me conta.
Ana Clara conheceu seu ex namorado no Tinder e foi bombardeada de amor em poucos minutos de conversa.
Pedro, um professor de química e comediante nas horas vagas, a convenceu em pouquíssimo tempo a praticamente se mudar para a sua casa. Não era nada oficial mas ela simplesmente não conseguia mais dormir na própria cama. Sua rotina mudou completamente e ela não sabe até hoje explicar o porquê.
A fase do amor não durou muito. Logo no início do relacionamento, ele já dava sinais de que aquilo não acabaria bem mas depois de uma briga com direito a gritos e apertões em seus braços, ele dava a ela uma orquídea comprada no supermercado e isso era o suficiente para que ela ficasse.
Ana nunca se sentiu bem com o corpo. Passou pela obesidade na adolescência e vivia lutando contra a balança.
Na época do relacionamento com Pedro, uma das coisas mais doloridas dizia respeito à alimentação.
Ele cozinhava muito bem, ou pelo menos é o que ela imagina, já que ele não a deixava comer. Segundo ele, ela estava gorda, flácida e suas refeições deveriam ser rodelas de tomate e um copo d’água, para o seu próprio bem.
Enquanto isso, ele se fartava de carne e outras iguarias diante dos seus olhos.
Ela aceitava aquilo porque a ideia de que ninguém mais a amaria como ele, era reforçada constantemente por seu abusador narcisista.
Com pavor de ficar sozinha, ela se esforçava em atingir o padrão por ele exigido.
Quando o jantar terminava, ela lavava a louça, repletas de panelas, que muitas vezes ela lambia escondida enquanto ele descansava.
Por fim, ela deveria tomar banho para poder se deitar ao seu lado, coisa que normalmente ele não fazia. Aliás, como a casa era dele, as regras também eram. Ela não podia dar a descarga ao usar o banheiro e mesmo sem entender o motivo, ela obedecia.
Durante a madrugada ele a acordava: “Está na hora de correr”.
Ela ia.
Totalmente manipulada e sem qualquer capacidade de julgamento racional, ela ia.
Fizesse frio ou calor, lá estava ela às 3 da manhã, sozinha, correndo pelo prédio enquanto seu algoz dormia.
O nível de manipulação era tão alto que ela simplesmente não via.
As marcas roxas no seu corpo deixadas pela violência dos seus toques não eram suficientes para que ela despertasse daquele coma emocional.
Ela acreditava em amor. Acreditava naquele amor.
E foi justamente o amor que fez com que ela conseguisse ter um pico de lucidez no meio de tanto torpor.
Ana tinha uma amiga que ela amava muito e Pedro em uma das discussões tentou a colocar contra essa amiga. Ela não sabe explicar bem o que aconteceu naquele dia, mas ela se lembra de ter entendido naquele exato momento que ela precisava fugir daquele homem. Ela sabia racionalmente que sua amiga era uma pessoa doce, boa e do bem e que qualquer tentativa de separa-las era infrutífera.
Ana reagiu. Se transformou em um trator e enfrentou seu abusador que como uma criança acuada, chorou.
Ela teve forças para sair. Teve forças para não voltar. Teve forças para pedir ajuda.
Teve forças para seguir em frente. Ana está viva.